Por Vinicius Bertoncini Vicenzi
Alice vestiu o uniforme. Arrumou-se toda, sozinha. Não foi à escola, claro. Mas foi. Enquanto nós, pais, nos questionávamos no grupo de Whats sobre a eficácia da mudança da rotina da escola, com mais horas sobre as telas, elevando nossos tons sobre o “digital”, nossa filha nos dava uma grande resposta, presencial, sobre esses tempos, sobre esses tempos do novo. Sabemos, enquanto educadores, o que o novo precisa de nós? Estamos verdadeiramente abertos, dispostos a aprender?
Boquiabertos ficamos nós, pais, hoje ao ver a quase totalidade da turma aparecer para a “live” de uniforme. A infância nos surpreende a cada instante. Daí advém a sua força, sua riqueza, quando, por instantes, nos abrimos a ela, nos deixamos surpreender.
Nada, contudo, indicava tal resolução. Alice chorara no dia anterior ao saber que teria mais horas com os professores. Porém, no dia seguinte, essa já não era a sua verdade. Vestiu-se com o uniforme guardado há 3 meses, um pouco amassado, é verdade, e, feliz, sentou-se à frente de sua professora, de seus amigos. Estava pronta!
Não temos ideia do que é esse momento para as crianças. Já o disse em outro texto. Mas elas sabem. E parecem nos sinalizar, por imagens, falas, das suas necessidades. Que mudam a cada mês, a cada semana. O que era verdade, necessidade, no início da pandemia, quem sabe já não mais seja. A verdade da noite de Alice não é a mesma ao acordar. A infância muda, e muda, e muda. Estamos prontos, abertos, a descristalizar nossas verdades? Nossas verdades “sobre eles”? Tudo o que pensávamos sobre a EaD continua válido? E sobre a tecnologia? Temos certeza?
O que, evidentemente, não significa uma aderência irresponsável às “inovações”, ao discurso fatalista de que “agora será assim”. Não sabemos. E é porque não sabemos que talvez devêssemos nos permitir experimentar, experimentar com as crianças, com os alunos que temos hoje, ali, diante de nós, em fragmentos de tela. Aprender junto o que pode ser uma educação nesses tempos, desse tempo. Quiçá não tenhamos muitas escolhas. Nossas vontades e preferências, as pedagógicas inclusas, precisam também se submeter ao que é, ao que está sendo.
Alice sabe, contudo, que aquilo ali, em sua tela de computador, não é, de fato, escola. Não subestimemos os nossos pequenos. Alice morre de saudades de sua escola, dos amigos, dos lugares. Do caderno cheio de atividades, inclusive. Vestir-se com o seu uniforme não é, portanto, uma “fantasia”, não é também “fardar-se”. Não havia nenhuma obrigação em jogo. Mas havia jogo, havia invenção. E é por isso que, mesmo sem se falarem sobre isso, outras crianças foram se “juntando à brincadeira”. E isso é o real.
Aprendi com um grande mestre, o Prof. Walter Kohan a brincar com as crianças, a filosofar com elas. Walter senta em roda com as crianças e, de fato, filosofa com elas, experimenta novas formas de pensar, para o desespero de certos olhares “filosóficos”. Aprendi com ele a ver a infância não mais como a falta que a palavra indica, “in-fantia”, “aquele que não fala”, mas como potência. Afinal esses, de quem a palavra não podia ser tomada em valor, “menores”, de fato falam. E pensam. Inventam. Inventam formas. Como a nossa Alice que, diante de “mais aulas”, resolveu que já era hora de vestir -se “como” na escola.
Agora me diga você: Quem aprende? E quem ensina?
Aprendemos o que não ensinamos? Ensinamos o que não aprendemos? Viva o paradoxo da infância! Uma alegria ver uma Alice “através do espelho”!
Texto de Vinicius Bertoncini Vicenzi, pai de Alice e disseminador da educação sistêmica.
Doutor em Filosofia pela Universidade do Porto/Portugal, Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Membro do Núcleo de Estudos de Filosofia e Infância (NEFI/UERJ)